segunda-feira, 24 de novembro de 2025

E QUANDO EU PENSO NA MORTE DO MACALÉ EU TENHO SOLUÇOS, E OS SOLUÇOS ESTRAGAM MINHA GARGANTA


O
Jards Macalé morreu na semana passada, aos 82 anos. Foi um dos talentos que despontaram em meio ao tropicalismo, mas não conseguiram, de início, brilhar tão intensamente como Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia.

Mas, quando o quarteto de elite do tropicalismo foi intimidado pela ditadura, inclusive com prisão e desterro do Caetano e do Gil, a linha experimental do movimento sobreviveu graças ao Macalé e ao Tomzé.

O Macalé começou sua carreira profissional em 1965, como violonista nos espetáculos do Grupo Opinião. Mas só se tornou um artista notado pelo público e pela imprensa a partir de sua participação no quarto FIC, quando cantou "Gotham City" e recebeu uma das maiores vaias da época dos festivais. Com isto, de imediato ficou conhecido como artista maldito

Também em 1970 lançou o compacto duplo Só Morto, que ouvimos até ficar riscado na nossa comunidade alternativa no Jardim Bonfiglioli. Morríamos de rir com a ingenuidade dos censores, que não perceberam as referências ao uso da maconha na canção "Soluços" ("Minha garganta fica vermelha, irritada, eu ainda não comprei meus óculos escuros") nem ao clima de medo e terror criado pela ditadura militar ("Esse sol tão forte é um sol de morte"). 

Adiante, contudo, os censores considerariam o xote "Sim ou não" um atentado à moral e aos bons costumes, tendo o imbróglio até causado a prisão do Macalé por alguns dias. O motivo foi o palavrão subentendido em "se você disser que pode, garota, eu me caso com você". O que será que eles queriam, casamentos assexuados? 

É um arraso o LP de 1972, que leva o nome dele e tem o melhor repertório  de todos os seus discos, incluindo parcerias com Torquato Neto e Capinam.

E foi um ato de coragem sua iniciativa de promover, em 1973, um show celebrando os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com a participação do Chico Buarque, Gal Costa, Gonzaguinha, Luiz Melodia, Paulinho da Viola e Raul Seixas, entre outros. Imediatamente proibido, o álbum duplo dele derivado acabou  sendo lançado em 1979, quando Ernesto Geisel desmontava o aparato repressivo dos anos de chumbo . 

É superlativa a canção "Let's play that", na qual ele recriou o "Poema de Sete Faces", do Carlos Drummond de Andrade. O "Quando eu nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: 'Vai, Carlos! Ser gauche na vida' virou "Quando eu nasci um anjo torto, um anjo solto, um anjo louco veio ler a minha mão. Não era um anjo barroco, era um anjo muito solto, louco, louco, muito doido, com asas de avião. E eis que o anjo me disse, apertando a minha mão, entre um sorriso de dentes: 'Vai, bicho, desafinar o coro dos contentes!'"

Foi esta a fase em que acompanhei bem o trabalho do Jards Anet da Silva, mas ele ainda fez muita coisa boa. 

E quando penso na morte do Macalé eu tenho soluços, e os soluços estragam minha garganta. Até a vista, mermão! (por Celso Lungaretti)

domingo, 23 de novembro de 2025

BOLSONARISMO, EM FRANGALHOS, ALEGA PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA. E A ARMNINHA, ONDE É QUE FICA?

Como se fôssemos ingênuos ou desmemoriados, os bolsonaristas agora querem nos convencer de que a prisão domiciliar do Jair foi revogada e ele passou para o regime fechado como consequência de perseguição religiosa (!).

Nem sequer tentam justificar a tentativa dele de livrar-se da tornozeleira danificando-a com um ferro de solda. Até mesmo a conversa pra boi dormir tem limite.

Quanto à religiosidade do condenado, nós a conhecemos bem de outros carnavais. 

Lembram de quando ele fez arminha na Marcha Para Jesus de 2019?

Pois é, o evangelho dele é o do Armai-vos uns aos outros, e não o do Amai-vos uns aos outros.

Quanto aos pastores evangélicos que embarcaram na canoa furada desse cidadão que de cristão nunca teve nada, Silas Malafaia em primeiro lugar, merecem ajoelhar no milho como penitência...  (por Celso Lungaretti) 

sábado, 22 de novembro de 2025

PRISÃO DO JAIR BOLSONARO PODE TER EVITADO UMA TENTATIVA DE FUGA. PARABÉNS À VIGILANTE PF!

J
air Bolsonaro finalmente está preso!

Levaram-no para a Superintendência da Polícia Federal, em Brasília. Antes estava em prisão domiciliar, mas descumpriu exigências cautelares. A medida foi tomada também para evitar riscos de fuga.

Não é ainda a morada definitiva do nosso pior presidente de todos os tempos e do responsável (com sua sabotagem à vacinação contra a covid) pelo maior número de homicídios culposos de brasileiros em toda a História. 

A decisão sobre o novo endereço do chefão dos golpistas só será tomada quando forem esgotados todos os embargos da defesa, no próximo dia 29.

O descumprimento das medidas cautelares foi uma tentativa do Bolsonaro de romper a sua tornozeleira com (conforme ele admitiu) ferro de solda  para retirá-la da perna. 

O chamamento para vigílias em favor de Bolsonaro, feito pelo filho Flávio Bolsonaro, foi visto pela PF como uma possível criação de condições propícias para a fuga do condenado, aproveitando a aglomeração.

O ministro do STF Alexandre de Moras, que atendeu a um pedido da PF, justificou assim sua decisão: 
"Embora a convocação de manifestantes esteja disfarçada de vigília para a saúde do réu Jair Bolsonaroa conduta indica a repetição do modus operandi da organização criminosa liderada pelo referido réu, no sentido da utilização de manifestações populares criminosas, com o objetivo de conseguir vantagens pessoais".

O único senão é que a prisão do Bolsonaro chegou com um atraso de 35 meses. Deveria ter sido decretada logo após o 08.01. Réu mais culpado do que ele, impossível! (por Celso Lungaretti)

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

DOIS COMPANHEIROS QUE EU ESTIMAVA MUITO, EXECUTADOS NA CASA DA MORTE

Nunca procurara conhecer em detalhes como morreram companheiros queridos, nem mesmo quando esses relatos ficaram fáceis de levantar na internet. Sabia que isso me deprimiria demais.

Contudo, ao escrever o Náufrago da Utopia, tal informação se tornou obrigatória.

Sabia que desaparecera prisioneira da repressão a Heleny Ferreira Guariba (de quem muito gostei mas me contive porque em cada instante que passava com ela a colocava em perigo, a Lucy ainda desconhecida do DOI-Codi  e eu com a face estampada nos cartazes de procurados espalhados por todo lugar). Mas ignorava que ele expirara na famigerada Casa da Morte de Petrópolis. 

À dor da perda, que nunca deixei de sentir, acrescentou-se a raiva impotente ao saber que ela foi levada a um centro clandestino de torturas, sem esperança de sobreviver, para passar pelos piores tormentos e, no final, ser abatida com um animal.

Quando estava sendo torturado no limite das minhas forças, consolava-me a certeza de que aquilo teria um fim. Bastaria aguentar mais um dia, e outro, e outro… até que os companheiros tomassem providências defensivas lá fora e não sobrassem mais  motivos operacionais  para aquela bestialidade.

Sem luz nenhuma no fim do túnel, apenas a certeza da morte, como terão sido os últimos dias da Lucy?

Foi o que me atormentou ao longo de toda uma noite insone, no pior momento possível, pois estava em má situação financeira e era obrigado a passar umas 14 horas por dia escrevendo o livro que, contra a entrega dos originais, iria me livrar de outro pesadelo, o despejo.
Também supunha que José Raimundo da Costa, a melhor amizade que formei na VPR, houvesse mesmo morrido ao resistir à prisão, como os jornais noticiaram.

Já no momento dos acontecimentos, eu sabia muito bem que boa parte das mortes noticiadas dessa forma não passava de execuções a sangue-frio.

Ao ser levado para depor numa auditoria do Exército, certa vez, o oficial que comandava a escolta comentou o sucessivo anúncio de mortes de companheiros do Movimento Revolucionário Tiradentes. Segundo os jornais, depois da morte em combate, sempre era encontrada uma pista que levava ao elo seguinte da cadeia. Risível.

Para não deixar dúvidas, aquele oficial disse: "Você tem sorte de estar preso. Lá fora, hoje, não escaparia com vida"

Mesmo assim, no caso do Moisés, eu acreditei — quis crer — na versão oficial.

Quem sobrevivia na clandestinidade desde 1964 e se safara de tantas armadilhas, certamente resistiria até a última bala — pensei.

Não levei em conta, no entanto, sua amizade com o cabo Anselmo, a quem sempre defendera das acusações lançadas por outros agrupamentos de esquerda.

A confiança no velho companheiro dos movimentos da marujada, com certeza, causou sua prisão com vida. Quem foi capaz de armar uma cilada mortal para a mulher que engravidara, não hesitaria em impedir que um velho amigo tivesse um final menos atroz.

Moisés era um homem forte, que convivia há muito tempo com a ideia de morrer pelas mãos dos inimigos. Mas, o que ele deve ter passado  antes, também na Casa da Morte, é que me horroriza até hoje.

Pois, com o Moisés, o ressentimento era, inclusive, pessoal.

Pouco antes do golpe de 1964, sua prisão foi ordenada e o oficial encarregado de cumprir a missão fez a besteira de não levar escolta.

Os marinheiros do navio em que o Moisés servia simplesmente lhe perguntaram: "O que fazemos com esse palhaço?".

Ao que ele respondeu: "Jogamos no mar, é claro!".

Dito e feito. Só que o  palhaço  ensopado, submetido à pior das humilhações, conquistaria depois posição importante no Cenimar, o serviço de informações da Marinha. Da qual se serviu para mover uma caçada ao Moisés no País inteiro, obcecado com a ideia da desforra.

Só em pensar que esse reencontro haja finalmente ocorrido, tenho arrepios. (por Celso Lungaretti)

terça-feira, 18 de novembro de 2025

PROIBIÇÃO DA LINGUAGEM NEUTRA É UM ATO DE AUTORITARISMO RIDÍCULO

Militantes da revolução ortográfica exageraram 
em suas demandas e os tradicionalistas marcaram pontos

Sempre achei uma besteirinha a chamada linguagem neutra, que torna indeterminado se uma palavra se refere ao universo masculino ou feminino. 

Nisto e em quase todas as esquisitices do politicamente correto, a minha posição sempre foi a de que precisamos mudar o mundo, não a forma como nos referimos às coisas do mundo. 

Não devemos nos iludir, fazendo da rejeição de usos costumeiros um cavalo de batalha, como se o machismo fosse desaparecer bastando que o tornássemos uma palavra interditada. 

Continuaria existindo e causando os males que causa, pois sua extinção depende de uma transformação maior da sociedade, conhecida como revolução.

Isto posto, considero um ato de ridículo autoritarismo a lei que Lula acaba de sancionar, proibindo o uso de linguagem neutra na administração pública de todo o país.

Por que agir como se ainda estivéssemos na ditadura militar, quando os caprichos dos poderosos viravam lei?

Concordo que a tal linguagem neutra não deva ser imposta ao cidadão comum, pois  aí o serviço público estaria servindo para o proselitismo de uma prática que, por enquanto, tem mínima adesão.

Não vejo, contudo, por que não se proíbe o uso da LN apenas no que tenha relações com, ou se destine ao, público externo. 

Assim, não se estaria impondo a LN à coletividade em geral, nem impedindo que os adeptos dessa mudança conquistassem adeptos para sua cruzada no ambiente de trabalho.

Transcorridos 57 anos desde as barricadas parisienses, a palavra de ordem É proibido proibir continua tendo muito a ver. (por Celso Lungaretti 

A NOITE EM QUE O BRASIL SE F...

Em que momento o Peru tinha se f...? , pergunta Mario Vargas Llosa logo na abertura de Conversa na Catedral, que, lançado em 1969, continua sendo até hoje a culminância de sua extensa carreira literária.

Talvez a indagação seja mais fácil de responder no caso brasileiro: foi em 25 de abril de 1984.

Era uma noite úmida e estávamos na Praça da Sé, esperando o País renascer. A Câmara Federal apreciava a Emenda Dante de Oliveira e um gigantesco placar fora erguido para permitir o acompanhamento voto a voto.
Da esq. p/ a dir., Ulysses Guimarães, Brizola, Lula (o
único ainda ativo), Osmar Santos e Franco Montoro.


Antes, ouvimos discursos e mensagens augurando vitória. Depois, foi a derrota que se desenhou aos poucos, enquanto a garoa aumentava. Por fim, o longo caminho de volta para casa. Uns poucos exaltados e querendo briga, os outros cabisbaixos, sem ânimo para mais nada. 

Fazia 11 dias que minha primeira filha nascera. Não lhe legaria o Brasil de meus sonhos. 

As músicas, as passeatas, as concentrações-monstro na Sé e no Anhangabaú, o amarelo que usávamos nas roupas para simbolizar a adesão às diretas-já... tudo em vão. Algumas centenas de deputados haviam permanecido alheias à vontade nacional.

Sairíamos da ditadura pela porta dos fundos, como parece ser nossa sina. Do descobrimento do que já se sabia existir à independência para inglês ver, todos os momentos solenes da nossa História têm um quê de farsa e bufonaria. Mas, por Deus, daquela vez quase todos fizeram sua parte!

No rescaldo da derrota entraram em cena os   profissionais – conforme anunciou Tancredo Neves, aludindo a si próprio e a seus iguais. 

E, se poucos votos faltaram para o restabelecimento imediato das eleições diretas, muitos apareceram para ungir, por via indireta, o candidato da Aliança Democrática (um velho cacique da velha política, cuja morte precoce me fez lembrar as advertências da Vovó, Cuidado que Deus castiga!)Tanto tramou  para chegar à presidência apesar do seu carisma zero e não pôde exercê-la sequer por um dia... 

É claro que, no primeiro caso, os congressistas eram convidados a abrir mão de seu próprio cacife; e a segunda ocasião significava a hora das recompensas. Que foram prodigamente distribuídas.

Apesar da expressiva maioria em favor da emenda
Dante de Oliveira, ela não atingiu os 2/3 necessários
Não entrarei no mérito do Governo Sarney e da lenta agonia que consome até hoje a democracia brasileira, como se o nascimento espúrio tivesse lançado uma sombra sobre o seu futuro. Mas, quero deixar registrada – mesmo que tanto tempo depois – minha indignação com o aborto de uma esperança.

São raros os momentos em que há real interesse da população em influir nos destinos do País. E, cada vez que se ensaia um tímido despertar, surgem profissionais para conduzir os acontecimentos no sentido de um eterno retorno.

Nossa elite é sui generis: incapaz de formular um projeto nacional e de se unir em torno dele, alcança invejável coesão quando se trata de resistir às pressões que vêm de baixo. 

De empresários a políticos, passando por sindicalistas e acadêmicos, todos têm em comum a obstinação em não deixar a peteca escapar-lhes das mãos.

Daí o desencanto e o niilismo que grassam entre nosso povo. Quem ouve a voz das ruas sabe que o cidadão comum não confia verdadeiramente em nenhuma força do espectro político. Nenhuma.

E isto se deve, dentre outros motivos, ao balde de água fria sempre atirado no ânimo da multidão, como a garoa a nos castigar naquela noite em que acompanhamos mais uma traição à promessa de um futuro altaneiro, e voltei para casa sem palavras de amor para minha mulher nem paciência para ninar a criancinha, pois trazia a certeza, e os eventos posteriores só viriam confirmá-lo, de que naquele momento o Brasil tinha se f... (por Celso Lungaretti, no 10º aniversário da rejeição da emenda Dante Oliveira)

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

GRAÇAS À MARIA LIÍZA FONTENELE, O PT CONQUISTOU EM 1985 SUA PRIMEIRA PREFEITURA DE CAPITAL. AÍ A EXPULSOU...

Era dia 17 de novembro de 1985 e terminava a apuração de votos: concretizara-se o primeiro triunfo de uma candidata do PT a um cargo executivo da importância da prefeitura de Fortaleza, quinta maior cidade do Brasil. A vitoriosa foi a simpática Maria Luíza Fontelenle (1921-2009).

Uma multidão exultava diante do local de apuração, o Ginásio Paulo Sarasate. Tendo participado da coordenação da campanha (juntamente com Jorge Paiva, o coordenador geral, e outros menos votados, como o atual deputado federal José Guimarães, do PT), eu assistia àquela profusão de contentamento da multidão com um misto de alegria e preocupação. 

Lembro-me que estávamos em cima de uma Kombi, eu e o então deputado federal do PT José Genuíno (cearense radicado em São Paulo, que viera para o evento à última hora). Ele, percebendo minha alegria contida, que certamente transmitia certa dose de contrição, perguntou-mevocê não está feliz?  
Respondi-lhe que sim, mas também preocupado com o day after, pois aquela multidão estava se sentindo redimida e a nossa vitória não significava, obviamente, a redenção.    

Nosso triunfo se devera ao caos que marcara os governos de prefeitos nomeados por governadores que, por sua vez, eram escolhidos pela ditadura militar. 
A simpatia pessoal da Maria Luiza não bastava para
obter êxito governando em circunstâncias tão adversas.



Ainda por cima, as prefeituras daquela época não tinham autonomia financeira, pois esta só viria quando a Constituição de 1988 passasse a vigorar, no ano seguinte.

No nosso caso particular, as dificuldades eram evidentes: não dispúnhamos de nenhum vereador do PT ou de qualquer partido de esquerda; nenhum deputado estadual; e nenhum deputado federal na bancada cearense. 

Eu viria a ser o secretário de Finanças, incumbido de administrar a falência da prefeitura de Fortaleza.

Os meus receios não tardaram a ser confirmados pelo desenrolar dos acontecimentos:

— com 15 dias de governo, as categorias profissionais que haviam conquistado o piso salarial correspondente (graças, em grande parte, à nossa luta) estavam prontas para cobrar a implementação de tais conquistas, embora o orçamento já fosse deficitário; 

 — a empresa de ônibus de propriedade da prefeitura exigia o aumento do preço das passagens, como forma de cobrir o déficit que vinha sendo subsidiado pela receita da própria prefeitura, cujas finanças estavam combalidas; 

— os empresários de ônibus, idem; 
Reunião com o secretariado: abacaxis para descascar
— as empresas de coleta de lixo, pressionando ao máximo que fossem efetuados os pagamentos em atraso, deixavam, premeditadamente, de cumprir sua tarefa, de forma que o lixo se amontoava nas ruas, tornando insuportável o mau cheiro e o desconforto; 
— para completar o quadro, naquele início de ano vieram as chuvas particularmente e precocemente regulares, que aumentavam os buracos sem que as tradicionais verbas federais (era assim que funcionavam as prefeituras ao tempo da ditadura) chegassem. Era uma deliberada tentativa de fazer passar por ineficiente a administração popular recém-instalada. 
As dificuldades administrativas tradicionais eram enormes e intermináveis.  Ademais, a prefeita Maria Luíza Fontenele, além de ser a primeira mulher eleita para uma prefeitura de capital, pertencia à ala marxista do PT, que sofria um processo de perseguição interna (éramos adeptos do marxismo tradicional, do movimento operário, só posteriormente evoluindo para o marxismo esotérico da crítica ao valor/dissociação de gênero.

A dose era muito forte para o sistema, e até mesmo para o PT.

A ideia de assumir um cargo executivo na esfera política do capitalismo liberal burguês era e é um equívoco para quem se propõe a ser anticapitalista. 

Com d. Helder Câmara, detestado pelas elites brasileiras
Uma vez investido no poder, e sendo obrigado a conviver com todos os antagonismos sistêmicos institucionais decorrentes do imperativo de manutenção da ordem capitalista, um governo que possua norte revolucionário, ou mesmo reformista sério, passa a ter de administrar não somente a crise financeira do aparelho de Estado na atual fase de depressão econômica capitalista, como se vê obrigado a revogar as conquistas sociais adquiridas na fase de ascensão capitalista. 

No caso da nossa administração popular de 1986/1988 em Fortaleza, os problemas se agravaram pelo fato de não aceitarmos a política de conciliação com os políticos tradicionais e com donos do PIB tupiniquim. Isto o que nos colocou em rota de colisão com a descaracterização 

ideológica do petismo, já em curso (corrupção à parte, pois naquela época ela ainda não era tão visível).

Este foi o verdadeiro motivo da expulsão de Maria Luíza e seus apoiadores (inclusive eu, por ela escolhido para ser seu candidato à sucessão). 

De tudo ficou a lição não apenas da ingovernabilidade de qualquer governo que se proponha a ser pró-povo (a máquina estatal não foi concebida e aperfeiçoada para isto), bem como de quão incoerente é, para quem denuncia a falência vindoura do capitalismo, tentar administrá-lo em proveito desse mesmo capitalismo.

Tal foi, em linhas gerais, a trajetória que nos levou ao amadurecimento político e consequente opção pelo Marx esotérico, que se contrapõe em tudo ao Marx exotérico, do movimento operário, marcado pelo politicismo inconsequente. 

A concepção de luta social a partir da crítica da economia política e da dissociação de gênero difere completamente:
— dos métodos e objetivos teleológicos da luta eleitoral; 
— da luta pela inserção administrativa no aparelho de Estado; e 
— das concepções e objeto teleológico das atuais lutas do movimento sindical (movimento feminista do movimento dos sem-terra e dos sem-teto, etc).    
Estão equivocados os que defendem os sucessivos mandatos do Lula como se fossem atos de resistência anticapitalista. 

Destarte, não tenho saudades da nossa experiência da administração popular, mas confesso que aprendi com ela. (por Dalton Rosado). 

sábado, 15 de novembro de 2025

UM BRASILEIRO CHAMADO REYNALDO LUNGARETTI

Meu pai era Reynaldo. Quando brigava com ele, minha mãe fazia troça com seu nome: "rei, nada!".

Hoje estaria comemorando mais um aniversário. É doloroso pensar em como o destino o tratou mal.

Eu tinha alguma admiração por ele, bastante amor e imensa compaixão.

Sua vida foi praticamente destruída aos 11 anos de idade; passou as sete décadas seguintes lamentando o paraíso perdido, sem nunca ser ser tão feliz quanto então.

Aconteceu assim: meu avô Baptista, mestre de fiação e tecelagem, veio tentar a sorte no Brasil. Trabalhou primeiramente em São Paulo, onde constituiu família. Depois, contrataram-no para comandar uma fábrica no Rio de Janeiro.

Foi o momento mágico da vida do Reynaldo. Gostava imensamente de Baptista, homem forte, altaneiro, mas carinhoso com os filhos, como costumavam ser os italianos. Numa foto amarelada, única que sobrou, ele aparece imponente, com a indumentária que usava em caçadas.

Além disto, havia todas aquelas brincadeiras da molecada de outrora e, principalmente, o campo de futebol ao lado de sua casa. Reynaldo chegava da escola, atirava seu material por cima do muro e caía na pelada. Levava a vida que todo garoto gostaria de ter.

Mas, um operário demitido por Baptista o tocaiou na feira de sábado, baleando-o pelas costas.

Minha avó teve de voltar para São Paulo, onde contaria com a ajuda de parentes. Um deles conseguiu colocar meu pai como empregado no Cotonifício Crespi, fraudando  sua idade para burlar a fiscalização. Em 1930, ingressou pela primeira vez no prédio em que trabalharia até 1976.

Conheci essa indústria gigantesca, que ocupava um quarteirão inteiro, na Mooca. À saída, a multidão lembrava a de um estádio de futebol. A área de trabalho mal iluminada, com muita poeira de algodão flutuando. Local deprimente, sufocante.

Na década de 1960, era praticamente idêntica à mostrada no filme Os Companheiros, de Mario Monicelli, sobre uma greve ocorrida em Turim... no final do século 19! Estávamos bem atrasados. [Temo que, sob o verniz modernoso, ainda estejamos.]

O menino que vivia feliz e despreocupado, jogando bola dia e noite, herdou, de um momento para outro, responsabilidades de homem da casa. Era este o dever de um primogênito, disse-lhe minha avó, ao enterrá-lo numa fábrica medonha.

Adulto, Reynaldo recitava com tristeza a poesia de Casimiro de Abreu: "Ah, que saudades que tenho/ da aurora da minha vida,/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais". E quando eu lhe conseguia fitas VHS dos mocinhos de  outrora (Tom Mix, Hot Gibson, Ken Maynard, etc.), dizia que "agora não têm a mesma graça").

Teve lá seus prazeres e distrações, dançava bem, foi razoável jogador de sinuca, ia no futebol, paquerava na rua da Mooca (o chamado footing, turminhas de homens e turminhas de mulheres passeando pela calçada, até que os mais ousados engatassem um papo, um flerte).

Só se empolgou uma vez na política, com Getúlio Vargas. Chorou  no dia de sua morte e guardava um jornal que a noticiou, na mesma caixa de outros marcantes (o do fim da 2ª guerra Mundial, o da conquista da Copa do Mundo de 1958, etc.). 

Era contra os patrões e a dominação estrangeira, mas a antipatia por um dos irmãos impostos (minha avó acabou casando de novo, com um viúvo que tinha mais filhos ainda para criar. cinco), comunista dado a discursar aos brados durante as refeições familiares, afastou-o da esquerda. Era complicada a convivência dos oito. 

A síndrome de arrimo da família o tornou cauteloso demais para ter êxito na carreira. Não trocava o certo pelo incerto, então continuou no Crespi até que fechasse, em 1964. 

Enquanto o negócio ainda ia bem, o Crespi submetia os empregados a um revezamento bizarro: numa semana seu turno era das 5h às 13h, na outra das 13h às 21h.

Quando tive de trabalhar alguns meses numa rádio, preparando o noticiário matutino, aquilatei melhor o sacrifício do meu pai, de marchar para o emprego na escuridão da madrugada, quando o corpo pedia mais repouso; afora a dificuldade que ele tinha para adequar-se à mudança do regime de sono, ora uma esticada só, ora dois períodos.


Três patrões, mas sempre o mesmo endereço, durante 46 anos! Eu, que trabalhei nuns vinte lugares diferentes, não consigo nem imaginar o que seja repetir o mesmo trajeto e labutar num ambiente sombrio por mais da metade da vida.

Houve um tempo em que moramos longe do Crespi e ele ia para o serviço de bicicleta. Às vezes era perseguido por cachorros. Às vezes chovia.

Eu era criança e escutava seus relatos com curiosidade, mas não me ocorria lamentar sua sorte, nem me sentiria bem fazendo isso. Agora fico me perguntando se ele esperava de mim elogio ou comiseração. Nunca saberei.

Casou mal, com quem queria mais do que ele poderia oferecer. Sempre comparando-o desfavoravelmente ao pai dela, meu avô Arthur Vannucci, que ergueu uma fabriqueta de móveis graças ao seu indiscutível talento, mas também à sorte: clientes que admiravam o seu trabalho e cotizaram-se para emprestar-lhe o capital inicial de seu próprio negócio. 

Reynaldo trabalhava seis dias por semana e ainda fazia bicos para um parente, recolhendo apostas de corridas de cavalo aos sábados e domingos. Estoicamente, e arriscando-se até a ter problemas com a polícia, embora fosse uma contravenção menor. Ainda assim, era amiúde espinafrado como acomodado por minha mãe.

Lá pelos 35 anos, desistiu dos velhos amigos e passou a se dividir apenas entre a casa e o trabalho.

Já não tinha esperança de alçar voos maiores. Percebia que o ramo têxtil nunca mais recuperaria o antigo esplendor. De pouco valeriam os cursos que concluíra brilhantemente, para passar de operário a contra-mestre (depois mestre), face à decadência do segmento.

Ele, que via os apostadores de fim-de-semana como otários, também fez as apostas erradas no jogo da vida.

Gostaria que eu, o filho único, chegasse aonde ele não pôde: engenheiro. Mas, a vida me conduziu noutra direção. E, já com 50 anos e a resignação habitual, enfrentava a Via Dutra com seu fusquinha para me visitar preso na PE da Vila Militar, pegando a estrada de volta no mesmo domingo. 

Inesperada e melancólica maneira de reencontrar os cenários da infância, pois havia morado no vizinho bairro de Deodoro.

Já lá se vão 22 anos de sua morte. Os parentes me dizem que estou cada vez mais parecido com ele, exceto por ter conservado os cabelos que Reynaldo perdeu precocemente, devido à poeira da tecelagem.

Morreu aos 83 anos, depois de quatro derrames lhe tirarem, nos últimos tempos, qualquer prazer que pudesse ter em estar vivo. 

O seu enterro foi a única ocasião em toda a vida em que eu deveria dizer algo, porém as palavras não me vieram. Nada que eu pudesse dizer lhe faria justiça. Gente é para brilhar, disse o Caetano Veloso; mas, o que fazer quando a oportunidade de ouro nunca chega?!

Era um bom homem, que não concretizou seu potencial nem obteve o pouco com o qual sonhava. Merecia do destino muito mais do que recebeu.

Pensando nele, redobro meus esforços para que a vida não seja mais essa competição inútil e insana, na qual quase todos perdem e só bem poucos se realizam plenamente(por Celso Lungaretti)
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